Uma porra! Essa Virada Cultural é uma merda. Pura violência, pura sacanagem com a gente. Por quê? Porque a gente num é gente, a gente não é nada, entendeu? A gente é o lixo, o excremento da sociedade. A gente é pra ficar aí, jogado, sujo, sem ter lugar pra tomar banho, sem ter o que comer, sem ter onde cagar nem dormir. A gente é pra ficar invisível. A gente num devia nem existir na face das ruas, porque a gente incomoda. A gente é o avesso da sociedade, do sucesso, do consumo. Tá ligado? Tudo bem, uma hora a gente aceita, se acostuma com isso. Faz o possível pra não aparecer, se pede alguma coisa faz com vergonha como se pedir fosse errado, como se estivesse roubando. Tem que agüentar bacana tirar nóis de pinguço, cachaceiro e outros pano. De dia, só humilhação: empurra-empurra, correria, gente gritando. É nóis aqui largado, sem vida, sem amigo, sem trabalho, sem dinheiro, sem nada. Fazendo um biquinho aqui, catando umas latinha ali, uma correria acolá, esmolando. A gente sobrevivendo. E de tarde vem a noite: o breu, a solidão, o apagar do sol e o abandono. A fome e o frio. Rasgando a barriga, cortando o sono. As vezes, só muita cachaça na cabeça, senão não tem jeito. É foda. A gente sofre pra caralho nessas madruga aqui, meu irmão. Você não tem noção. Mas então, um belo dia, vem essa porra da Virada. Que merda é essa Virada, cara? Esse mar de gente zanzando no nosso espaço. Show pra lá e pra cá. Barulho, treta, pegação. Sodoma e gomorra, pura orgia. E gente bêbada. Gente zuada, travando as quatro pata. Pode olhar, só gente lôca, alucinada. A mais pura degradação do ser humano. Tá aqui. O pior do ser humano tá aqui. E não tô falando da gente. É um que bebe, é um que fuma, é outro que fode, outro que cheira. E assim vai, chapando até o osso. Até perder a mão, perder o juízo. Encostar em alguma porta de loja, de bar, e cair. Apagar e dormir. Coma. Overdose. Tipo aquele filha-da-puta ali. O que caiu do meu lado. Do meu lado, é mole? Começou a vomitar, o viado. Golfar. Jogado no chão e golfando. Não saía nada, só uma água preta, tipo de fossa. O cara mal, zoado. Você acha que alguém socorreu? Que nada. Pode morrer alguém aqui no meio que ninguém faz nada. Passavam ainda é com uma tiração, dando risada. “Ê, é pra bebê, caí, levanta, não é pra bebê, caí e fica, não.” E pega sapato, dá chute na barriga, pisão na cara. O mano lá, sem reação. Só chamando o Hugo, malzão. O filha-da-puta do meu lado. Tive que pegar meu papelão, minha sacola e sair fora. Ia acabar sobrando pra mim. Isso que é foda. Não agüento, essa putaria. Ninguém respeita o sono dos justos, meu irmão. Ninguém. Não basta no breu dessas madrugada, um monte de morador de rua que é morto com facada, paulada; paralelepípedo na cabeça, vem essa porra de Virada. Ninguém dorme. Uns playboy forgado que vem, grita na cabeça, joga água, cerveja, vinho na nossa cara e some. Querem pega nossas coisas, bota fogo. Tudo em nome da diversão. Diversão pra quem, caralho? Cês acham que tem o direito de vir aqui, tocar esse puteiro, acorda nóis, ficar se fingindo de nosso amigo enquanto tá bêbado, chamando, encostando, abraçando, dizendo que a gente não precisa só de pão, tem que aproveitar a cultura, que a vida não é tão dura e depois vão embora, mostrando pra gente a porta da rua? Deixando pra gente só os vômito, as parede com cheiro de mijo e essas montanha de lixo? Vai pro inferno, porra. Virada Cultural o caralho. Pra nóis essa porra é tudo uma merda. Pura politicagem, lavagem de dinheiro. Sacanagem. A vida segue, e hoje esses corno que tão me abraçando, tudo querendo dançar comigo, amanhã vão passar aqui e fingir que nem me viram. Fingindo que eu nunca existi. Vão pra casa, repousar no gostoso, dormir no quentinho, e a gente continua aqui. Fudido. Rezando pro prefeito acabar com essa bosta de evento e usar melhor o dinheiro público quando for pensar em investir.
(rodrigo ciríaco - www.efeito-colateral.blogspot.com)
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